6.6.09

ES-PRE-GUI-ÇA-DEI-RAS


João mostrando as espreguiçadeiras do jardim:

- Ó, ó... essa 'tá certa... essa 'tá engasgada.

18.1.08

DOIS


João está um rojão.
De dois em dois o menino enche o papo.
João é prosa.
De língua só dele, gente já pensou que é
alemão,
espanhol,
aborígine
e até português.
O negócio é falar -
eche gol boia mamain papaii bubu doix pexe abufe tete ops roy royce.
Assim, claro assim.
E vem tudo de dois.
Vezes e vezes...
Um corre-corre...
Um pega-pega...
Um cai-não-cai...
Sai-sai...
O bicho papão.
Papa sorrisos, brincadeiras e beijos.
Destes, João quer todos.
E quem não quer dá, quando viu, já deu.

10.7.07

ALVORADA

Tantas cores no céu...
Fazer delas sempre o azul?
Púrpura a manhã.
Pura manhã.

8.6.07

VENTO FORTE


A casa estava fechada à visitação. Chamou. Esperou. Viu seu amor chegar através das grades. Ventava forte aquela tarde. Caminharam contra o vento. Palavras ao vento. Uma mesa para dois. Permaneceram amiudados no canto da parede. Cruzaram as pernas e os dedos. Até comeram. Pão com manteiga; ela, peixe; ele, carne. Água e lágrimas. Voltaram. Os passos eram mais leves, os gestos mais pesados.

A casa se abriu a visitação. Subiram. Alegraram-se com o fruto miúdo entre as pernas. Havia motivos para sorrirem. Sorriram. E logo saíram.

Ruas expressas, ruas só deles, tantos nomes e caminhos. No banco de trás uma festa, na frente, olhares e frases ao retrovisor. O espelho parecia maior conforme os carros passavam. E passavam. E passavam.

Vento forte os aproximou. Um frio protegido pela companhia do andar, de quem aprendeu a andar há pouco. De tudo que sabe, o pequeno prefere esse, esse, esse... Sabe sorrir quando lhe tiram risos, chorar quando lhe tiram a atenção. Viu centopéia com as pernas amarradas, viu seus pais de caras amarradas. Barata de seis pernas, boi de quatro, gorila de duas, serpente do paraíso. Formiguinha caminhava sobre eles, cochichava novidades de um cavaleiro prateado no ouvido. Naquela colcha de retalhos estavam suas lembranças. E fiava-se mais um quadrado. Um fio, um frio alinhavando suas vidas, suas idas e vindas. Quando a centopéia foi à cidade já era segunda-feira... Apesar de domingo, acabou tudo na quinta. Não esperaram pelo final da peça, da colcha, dos sonhos... O que haveria acontecido com a centopéia, com a verdade e o amor?

Vento forte amaciado e um convite ao café. Um café e um cigarro. O pequeno trazendo brinquedos, o pai trazendo esperança, a mãe quase quieta.

Na frente do quarto da criança eles se olharam. Num medo mudo se jogaram aos beijos. Como há muito não se beijavam. Como há muito não se tocavam. O pequeno foi dormir e os dois se deitaram. Levantaram-se do chão as vontades. Seria aquela colcha uma nova colcha? Tudo novo e tão conhecido. Houve aliança nos dedos, pedido de casamento ao avô. Houve filhos e viagens. E houve a volta. Houve o espelho, houve o rímel, o blush e o batom. Houve a espera. Houve o silêncio do elevador. Houve o beijo e a despedida. Houve o telefonema. Houve o amor. Houve a seta à esquerda e o caminho adiante. Houve a festa que não aconteceu.

Ventos fortes voltaram pela noite... Ventos fortes os sopraram para longe... A semente e a dor.

30.5.07

A®TENTADO [A LINDA DONZELA, O RAPAZ, O MARIDO E A OBRA DE ARTE]


Uma linda donzela vai a uma galeria de arte, entra, vê a exposição em cartaz e uma das peças lhe pega pelos olhos. Aquela forma inusitada chama sua atenção. Nunca vira algo tão inovador, algo tão diferente. Nunca tinha visto aquilo antes! Encantou-se com a peça! Muito! A ponto de mostrar todo seu encanto em suspiros raros de prazer! Não tinha ainda certeza, mas achou que aquela peça ficaria ótima na sua sala de estar. Os passos com seu bater de saltos no chão da galeria eram dados com tamanha determinação que o dono da galeria se convenceu pela moça, mesmo antes dela se mostrar convencida. Arregalou os olhos… Parecia estar surpreso pelo gosto da freguesa. Pelo tamanho gosto da linda donzela pela obra. Não havia motivos pra rodeios, o galerista sugeriu um preço razoável pela peça e a linda donzela aceitou. Feliz, botou a mão na bolsa e arrematou a obra de arte à vista. Obra de arte embrulhada, casaco vestido, a linda donzela coloca seus óculos de sol, dependura a bolsa no ombro e pede ao carregador que a siga. Rapaz forte contratado da galeria ergue o embrulho do chão e o coloca na altura da cabeça, apoiado no ombro, um pouco avançado pro pescoço. A linda donzela o alerta da altura da porta, exagerando seus cuidados com a obra, já que pelo batente da porta daria pra passar ela, o rapaz e a obra empilhados, isso se o rapaz fosse suficientemente forte para sustentar todo o peso, contando com a certeza de não ser a donzela que estaria na posição do rapaz, já que nem a obra ela tem nas mãos, afinal, se a linda donzela desse conta do recado ou se nem tivesse a idéia de levar pra casa aquela obra, não haveria rapaz, não haveria o cuidado exagerado com a obra, talvez nem houvesse a obra, e particularmente não estaríamos aqui nesse devaneio louco de dar nó na cabeça, talvez essa história nem existisse, talvez, quem sabe, não estaríamos sequer aqui. O rapaz, mesmo contando com a destreza e força que tinha, ouviu os conselhos da linda donzela até o carro e aceitou de bom grado a gorjeta generosa dada por ela. Normalmente precisaria ele, o rapaz, carregar embrulhos durante o mês inteiro pra fora da galeria pra se chegar naquele valor. O rapaz nem ao menos soubera o que carregara, pra ele aquilo sempre foi um embrulho pesado, mas se mostrava feliz, talvez tão feliz quanto a própria mulher que levava o embrulho com ela pra casa. Boa tarde, até logo, passar bem, a linda donzela se despede do rapaz, o rapaz agradece a linda donzela, ambos satisfeitos com o que tinham e tchau.

A mulher parecia muito realizada. Um pouco ansiosa talvez. Queria mostrar logo pro marido a obra que comprou, queria logo ir pra casa ver como a sala receberia aquela peça. Será que troco o “acharpor” de lugar? Aquela samambaia bem que podia sair daquele canto. Acho que vou trocar a samambaia e o aparador de lugar com o sofá. Quem sabe não mudo até mesmo a televisão. É, quem sabe, a linda donzela se perguntava, dirigindo o seu carro e decorando sua sala e seus pensamentos. Chegando em casa, tudo mudou de lugar. Aquela peça parecia mesmo ter mudado a cabeça da linda donzela de lugar, a começar pela sala. Animada com a cara nova da sala, a linda mulher agora só espera o marido. Sentada no sofá, que trocou de lugar com a televisão, que ficou do lado oposto à samambaia e do aparador, que estão agora de quina pro “acharpor” e em frente a peça que tirou da galeria, a linda donzela espera. A sala dava gosto de se ver. Hoje as novidades da rua são dela, está na sua sala de estar! Sente-se feliz por isso, acende um cigarro e ao invés de ligar a televisão, só espera o marido.

A linda donzela ouve os passos do marido, seus barulhos de chave e o abrir do portão, mas não se levanta do sofá. Pelo contrário, cruza as pernas e acende outro cigarro. O marido chega. Com o mesmo ar de cansaço que está desde há dias. A linda donzela sorri. O marido arregala os olhos, larga no chão o que tinha nas mãos e pergunta com o auxílio dos braços: O que aconteceu aqui? Gostou da nossa nova sala, meu bem? O que isso está fazendo na nossa sala, mulher? Gostou, querido? Quem colocou isso aqui, quem trocou as coisas de lugar? Eu, respondeu confiante a linda donzela! Você?!… Sim, fui eu. Fui até a galeria de arte hoje de manhã e me encantei com essa peça. Arte? É, galeria de arte. Você comprou isso na galeria de arte? Foi, não é lindo, não combinou com nossa sala? Claro que não, mulher, isso combina com o nosso banheiro, não com a nossa sala! Você não gostou, é isso? Não, claro que não! Por que, meu bem, nunca vi algo tão diferente. Claro que não, mulher, você mija sentada, porra! O que você está querendo dizer, hein, que mulher não entende de arte, é? Não, mulher, quero dizer que isso que chamaram de arte serve para homem mijar! Pretencioso! Mulher, isso é um mictório, caralho! Um mictório? O que é um mictório, senhor sabichão? Você nunca entrou em banheiro masculino, puta merda? Claro que não! Sou mulher, sempre entrei no feminino! Pois então te levo a qualquer bar pra te mostrar que o que você pôs na nossa sala serve pra qualquer bêbado mijar, e mijar de pé enquanto puder se aguentar de pé, porca miséria! Credo, querido, não fale assim! Tô te falando, porra! Não acredito! Mas o que um negócio desses estava fazendo na galeria de arte, então? Te passaram pra trás, mulher! Te fizeram de trouxa! Virgem Santíssima, mas como pôde? Quanto você gastou nessa joça, me diz!? A esta altura, não só a sala, não só a casa, mas todo o mundo desabou-se na sua frente! A linda donzela se abriu em choro… Quanto você pagou pra eu mijar na minha sala, mulher? Ai meu Deus! Quanto, mulher? Tanto, meu bem, tanto! Isso é um absurdo! Te roubaram! Daria pra reformar o banheiro inteiro com isso! A linda donzela, não sabendo mais se ainda estava tão linda, tentou uma última vez se convencer do que fez e falou baixinho, entre um soluço de lágrimas e outro: Mas disseram na galeria que isso é arte… Arte uma pinóia, isso só serve pra mijar! E você, você só serve pra receber mijada mesmo! Gastar todo o meu dinheiro com essas merdas aí! Ai como sou burra, como poderia saber, ó Meu Deus? Sou mulher… não faço xixi de pé, não entendo dessas coisas. E não entende nada de arte também, né senhora sabichona?! É, acho que não, acho que não estou entendendo mais nada… Me desculpe, meu bem! Juro que amanhã vou na galeria trocar! Trocar não! Dá de você me aparecer aqui com um pinico! Quero o meu dinheiro de volta! Esses artistas são todos uns desocupados, sem vergonhas, vagabundos, ladrões! Não quero nada da galeria a não ser o meu dinheiro de volta! Tá, vou tentar ver o que posso fazer, querido. E vê se também troca essa televisão de lugar, aí onde ela está dá reflexo! Ok, vou mudar. Vou me banhar, puta que pariu, vou me banhar. E tomara que não tenha mais nenhuma surpresa por lá! Pára, querido, vai, vai… Antes de sair da sala o marido pergunta: O que você fez para o jantar? Não fiz nada, passei o dia a mudar a sala de lugar. Passou o dia a fazer besteiras, você quer dizer? Esqueça isso, meu bem, vá pro seu banho que eu vou me aprontar, vamos jantar fora e esquecer tudo isso. A linda donzela estava com as pernas bambas. Mal conseguia ir para o quarto. Não entendia como acontecera aquilo com ela, como se deixou iludir, como a vida vinha se mostrando daquele jeito pra ela. A linda donzela não entendia porque continuava a gostar daquela peça tirada da galeria e posta na sua sala. A linda donzela não entendia porque continuava a gostar daquele marido.

Falou-se pouco no jantar. Havia pouco a se falar das novidades de cada um. Fora a maior novidade que se tornou uma besteira.

Foram pra casa. No caminho, havia uma obra da prefeitura. O marido que dirigia desviou-se do caminho e acabaram passando em frente a galeria. A linda donzela não quis nem dizer ao marido que era ali da onde a peça da sala de estar saíra. Ficou calada, observando. Sinal vermelho no farol, o carro parou. Lado a lado com a galeria. A linda donzela virou a cabeça, havia alguém de frente pra parede da galeria. A linda mulher nunca tinha visto um mictório, mas sabia como era um homem fazendo xixi. O sinal abriu. O homem havia já parado de mijar. O marido engatou a marcha e começou a sair. A linda donzela virou a cabeça pra trás. O homem que mijava na parede da galeria era aquele rapaz que carregara o embrulho até o seu carro, que tirou a obra de arte de dentro da galeria e que agora mijava nas suas paredes, sem o suporte de um mictório. O homem que mijava na parede da galeria era o forte rapaz! A linda mulher fechou a janela, ventava mais quanto mais pressa o marido tinha pra chegar em casa.

Chegaram. O marido ligou a televisão. Queria ver a final do campeonato. O marido não tirava o olho da tela. A linda donzela não tirava o olho da obra de arte. Acabou o jogo. O time do marido perdeu. 2x1. Veio o telejornal. Marido dormiu no segundo bloco. A linda donzela continuava olhando para obra de arte. Veio o sono. Naquela noite não chamou o marido pra se levantar e ir dormir na cama. Deixou lá na sala o marido, a televisão e a obra de arte. Foi pro seu quarto. Deitou-se. Deixou-se sonhar.

Aquele dia a linda donzela levou uma mijada dadaísta!

21.5.07

A®TENTADO [O MIJO E A CHUVA]


O avô de Carlinhos dizia que mijar na chuva prolongava sua existência. Carlinhos nunca gostou disso. Era um tal de trocar as calças do avô em dia de chuva que nem se fala. A cada calça um causo: “Mijaram na minha sombra, Carlinhos”. “Fiquei empoçado de molecagem, Carlinhos”. “Carlinhos, estou com um chuvisquinho à toa1 aqui”. “Um cheiro escorrido”. O avô de Carlinhos era bom em costurar desculpas. Dizia o avô que prazer maior nunca houve que acordar pra primeira mijada do dia, correr pro jardim, abaixar as calças até o joelho, nem pegar no pinto e mijar sem mirar em nada. Fazia isso desde menino. Só depois que ficou cego das pernas, o avô de Carlinhos começou a mijar nas calças. Confessou um dia a Carlinhos, numa das calças trocadas, que aquele mijo ele até viu nascer, mas quis fazer de calças vestidas mesmo, na chuva, pra perna cega também poder ver que a chuva estava nele inteiro. Carlinhos aceitou e colocou calça seca no avô.
O avô de Carlinhos era primitivo. Entendia os cientistas do mato, era artista e ainda teve tempo de se apaixonar. Pierre Clastres também foi um cientista do mato. E sabia muita coisa sobre primitivos, os ditos selvagens. Dizia que cientistas do mato tartamudeiam hesitações de um gago, e vesgo ainda por cima. Tinha ele a “certeza de que nos deslocamos na superfície das significações, que deslizam um pouco mais adiante a cada passo dado para aproximar-se delas” (Pierre Clastres, “Uma etnografia selvagem”, em Arqueologia da Violência, p. 67, pulicado originalmente em L’Homme, I, nº 9, 1969).

“Sendo as coisas o que elas são, a linguagem da ciência (que nada aqui coloca em questão) parece permanecer – por destino, talvez – discurso sobre os selvagens e não discurso dos selvagens. Como ele, não podemos conquistar a liberade de ser ao mesmo tempo um e outro, de estar simultaneamente aqui e lá, sem perder tudo e não ter mais lugar onde ficar. A cada um se recusa assim a astúcia de um saber que, ao tornar-se absoluto, se aboliria no silêncio” (Ibid).

Mas isso Pierre Clastres falou sobre o relato de Elena Valero2. Brasileira, branca, pobre, alfabetizada e de primeira comunhão feita. Num passeio de família em busca de madeiras preciosas nas montanhas da Serra Parima, confins venezuelano-brasileiros, sua família foi atacada por um bando de índios em guerra. E ela, com onze anos de idade, teve uma flecha envenenada cravada no ventre. Os pais e os dois irmãos fugiram. Elena foi capturada pelos assaltantes.

“Os índios [Yanoama] a levaram e a adotaram; ela tornou-se mulher no meio deles, depois esposa de dois maridos sucessivos, mãe de quatro meninos; ao cabo de vinte e dois anos, em 1961, abandonou a tribo e a floresta para voltar ao mundo dos brancos. (…) Pela primeira vez, uma sociedade indígena descreve-se a si mesma de dentro. Pela primeira vez, podemos nos introduzir no ovo sem arrombá-lo, sem quebrar a casca” (Pierre Clastres, “Uma etnografia selvagem”, em Arqueologia da Violência, p. 58, pulicado originalmente em L’Homme, I, nº 9, 1969)

“Ocasião bastante rara e que merece ser celebrada”, comemora o antropólogo.

Lucrécia D’Alessio, cientista de rua, prefere Peirce. Se fosse do mato talvez também escolhece Elena Valero como seu personagem, e não Lady Victoria Welby. Lucrécia tem interesse pelo espaço e as manifestações de linguagem que o tem como objeto. “O espaço é objeto de estudo de múltiplas áreas disciplinares, é necessário constatar a sua complexidade, renovada e transformada exatamente pela dinâmica e vitalidade daqueles mesmos estudos que, entretanto, não conseguem esgotá-lo” (Lucrécia D’Alessio Ferrara, Por uma semiótica visual do espaço, p. 96). Esse espaço então pode ser até os da montanha da Serra Parima. Estaria Lucrécia falando de Elena e não de Lady Victoria? Estaria então Lucrécia a descrever as calças molhadas de mijo e chuva do avô de Carlinhos? O avô de Carlinhos via no mijo escorrido sinais de chuva nele. Então Lucrécia também pôde ver. E Pierre, Peirce, Elena, Lady Victoria e Carlinhos também. O que a pesquisadora tem a dizer, talvez não faça as coisas serem, mas com certeza se vai saber delas. Pra isso existe o significado das coisas. Pra isso se dá nome a elas. Como Lucrécia preferiu Peirce, ai vai ele dizendo dos significados visuais das coisas:

“Uma palavra tem significado para nós na medida em que somos capazes de usá-la para comunicar-nos. Esse é o mais baixo grau de significado. O significado de uma palavra é mais precisamente a soma total de todas as predições condicionais de que a pessoa que a usa pretende tornar-se responsável ou pretende negar. Essa intenção consciente ou quase-consciente no usar a palavra é o segundo grau do significado. Mas para além das conseqüências de conhecimento, mas quiçá revoluções sociais. Ninguém pode saber o poder que uma palavra ou frase pode ter para mudar a face do mundo: e a soma destas conseqüências configura o terceiro grau do significado” (Peirce. C.P. 8. 176)

Menos semântico e de prosa com o avô de Carlinhos, Edgar Morin é cientista de festa. Faz ciência até em churrasco de amigos. Segundo Morin, cabe ao conhecimento científico promover uma religação dos saberes e enfrentar a compartimentação disciplinar, assumindo como missão uma reforma do pensamento. Morin era partideiro de um bom convível entre cientistas do mato e de rua e resolveu fazer um brinde com Pierre e com Lucrécia na festa de aniversário do avô de Carlinhos. No dia do avô contar anos, estrelas e até calças molhadas. No dia do avô fazer vento e contar ainda umas vinte velas acesas naquele bolo de aniversário. Era maio. Mas nunca se soube se era Touro ou Gêmeos. É que o avô de Carlinhos não entendia muito bem de signos. Só de objetos que o interpretassem. Carlinhos espantou urubus da sorte de seu avô. Pousou borboleta.


1 Dizia ainda que cientistas do mato chamavam esse tal de chuvisquinho à toa de mijo de São Pedro; românticos apaixonados, preferiam lágrimas de São Jorge.

2 Autora quase anônima, cujo relato foi recolhido ao gravador pelo médico italiano Ettore Biocca e traduzido no livro Yanoama. Récit d’une femme brésilienne enlevée par les Indieus (Paris: Plon, “Terre humaine”, 1968).

26.4.07

A®TENTADO [A TINTA E A PALAVRA]


“E sabeis sequer o que é para mim o ‘mundo’? Devo mostrá-lo a vós em meu espelho? Este mundo: uma monstruosidade de força, sem início, sem fim, uma firme brónzea grandeza da força, que não se torna maior, nem menor, que não se consome, mas apenas se transmuda, inalteravelmente grande em seu todo, uma economia sem despesas e perdas, mas também sem acréscimo, ou rendimentos, cercada de ‘nada’ como seu limite (…) Aquilo que eternamente tem de retornar, como um vir-a-ser que não conhece nenhuma saciedade, nenhum fastio, nenhum cansaço –: esse meu mundo dionisíaco do eternamente-criar-a-si-próprio, do eternamente-destruir-se-a-si-próprio, esse mundo secreto da dupla volúpia, esse meu ‘para além do bem e do mal’… quereis um nome para esse mundo?… Esse mundo é a vontade de potência” (Nietzsche, Os pensadores, p. 397).


Pretas a tinta e a palavra. Feitas de contrastes. Diz-se que há no preto a ausência de cor. Melhor. Poder-se-ão dar aos montes idéias que a preencha. Serão elas idéias comparadas em busca de um novo conceito? Tinta e palavra ficaram de castigo, com a cara na parede até aprender.
E lá estava ela, a parede, desde que a fizeram - plana, lisa, pálida e com sono. Lesma quis lamber sua testa. Isso a fez despertar. Não era desejo da lesma deixar rastro na parede. Só queria mesmo era beijá-la de língua. A parede abriu as pernas. E a lesma acabou trepando nela. A lesma pôde.
Tinta e palavra disseram ver no encontro da lesma com a parede um novo sentido pra elas. Diziam estar ali diante de um acontecimento puro, uma verdadeira relação. E estavam mesmo. Fodeu tanto a parede a lesma que causou rachaduras nela. A parede se arreganhou, precisou de suspensórios até. Dizem que foi tanto gozo naquela parede que sua cara até mudou de cor. Lesma não mais gostou. Foi dar de banda por aí. Dias após nem sinal dela. Fez-se ver que castigo só servia mesmo à tinta e à palavra. Porque à lesma, nem rastros mais. Só fantasma na parede, branco sujo. Ficaram desprovidas de sentido a tinta e a palavra. Sem a lesma (referente), até Saussure ficou de castigo. Precisou aprender que “não há nada de fixo ou de ‘fixável’ nessas relações. Daí por que os sentidos são sempre mais flexíveis do que os significados” (Regina Schöpke, “Arte e pensamento nômades: A afirmação da diferença”, em Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, p. 182).

“Se estas significações se abalam, ou não são estabelecidas em si mesmas, a identidade pessoal se perde (…) em condições em que Deus, o mundo e o eu se tornam os personagens indecisos do sonho de um alguém indeterminado. Eis por que o último recurso parece ser o de identificar o sentido com a significação” (Deleuze, Lógica do sentido, p. 19).

“O campo das singularidades impessoais emerge e arrasta consigo todos os significados ‘pré-fixados’. O caos toma voz; o ‘fora’ eclode e abala os alicerces do mundo sedentário – aparentemente tão seguro e bem protegido pelas ilusões de permanência criadas pela razão representativa. Mas não há nada de firme e de inquebrantável neste mundo. Só mesmo a razão sedentária poderia criar tais ilusões. O prórpio Estado é uma ilusão, ainda que seja uma das mais tenazes. Esquecemos, por fim, que o homem é primeiramente um animal que vive em bandos. Aliás, esquecemos também que o homem é um animal” (Regina Schöpke, “Arte e pensamento nômades: A afirmação da diferença”, em Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, p. 183-184).

Foi assim que as paredes racharam. Foi assim que a lesma se cansou da parede. E mudou. A lesma, as mesmas palavras e quase a mesma tinta, acotovelaram-se em outras paredes. Uma a outra foram se entregando aos prazeres voyeur de suas novas relações. Os mesmos elementos já apresentados em uma nova criação. A tinta e as palavras até duvidaram que a lesma pudesse ainda pensar em foder a parede. Lesma danada, fodeu mesmo. Era uma auto-referência às palavras e à tinta aquela lesma. Buscava na parede o seu acontecimento. Tinta e palavra precisavam do homem pra se colocar e tirar. Buscavam fora de si as razões de suas dores. “A culpa é sua da gente estar de castigo aqui”, dizia a palavra à tinta. Esta multiplicou as suas dores: “É preciso sofrer para expiar os seus pecados”. “Balela”, retrucou a palavra, “Deus está morto”. “Tá bancando o super-homem agora é?”, deu bronca a tinta. “Quero que tudo se foda”, aliviou-se a palavra. “Quero que a lesma me foda”, confessou a tinta. “Bom pra você, quem sabe assim não aprende a ser parede”. “Estou interessado na lesma, parede eu já sou”, concluiu a tinta.

16.3.07

A®TENTADO [DADA AO DADA]


“Eu lhes digo: não há começo e nós não trememos, nós não somos sentimentais. Nós rasgamos, vento furioso, o linho das nuvens e das preces, e preparamos o grande espetáculo do desastre, do incêndio, da decomposição. Preparamos a supressão do luto e substituímos as lágrimas pelas sereias estendidas de um a outro continente. Pavilhões de alegria intensa e viúvos da tristeza do veneno. DADA é a insígnia da abstração; a propaganda e os negócios são também elementos poéticos.
Eu destruo as gavetas do cérebro e as da organização social: desmoralizar por todo lado e lançar a mão do céu ao inferno, os olhos do inferno ao céu, restabelecer a roda fecunda de um circo universal dos poderes reais e na fantasia de cada indivíduo” (O Manifesto DADA, 1918).


Um menino que se dizia esquerdo tinha dois cachorros e gostava de jazz. O cão se chamava Miles e a cã, Ella. Miles e Ella eram amarelos e lindos. Miles era mais velho e já aprontou muito de suas fofurices até. Mas este caso aconteceu com Ella, logo de chegada.

Ella veio pra casa do menino nos braços de um amigo que morava com ele e gostava de reggae. Dada de enxoval e tudo por um casal de amigos do menino que gostava de Madonna. Era filha de Rocco e Lolla, Ella. Rocco e Lolla moravam na casa do casal de amigos do menino e eram felizes em seu jardim. Um dia o casal de amigos do menino foi viajar. Lolla entrou no cio. Rocco gostou. Quando o casal de amigos do menino voltou de viagem, Rocco e Lolla estavam grudados, um de rabo pro outro com um pedaço do pinto do Rocco tentando escapar de dentro da Lolla. Não houve balde d’água que soltasse os dois. Até tentaram, mas acharam melhor esperar até que Rocco e Lolla pudessem cheirar o rabo e as partes de um e de outro novamente. Foi daquela foda cheirando a cachorro molhado que Ella nasceu. Diz-se que Ella passou a não gostar de água tanto assim desde esse dia - fica achando às vezes que não vai sair de dentro dela a água. Pode ser. O fato é que à água empoçada Ella prefere água de torneira e chuva. Ella prefere o rio ao mar. E definitivamente Ella não gosta de balde.

O menino que gostava de jazz e seu amigo que gostava de reggae mudaram-se para a casa onde Ella veio morar havia sido há pouco. A casa era pequena de paredes - banheiro, cozinha e sala dividiam os dois quartos - um jazz, o outro reggae. Miles e Ella dormiam lá fora, onde, aliás, a casa se fazia por inteiro. Todas as janelas da casa se abriam para um quintal comprido, coberto com caquinhos que desenhavam flores no chão. Nos fundos da casa tinha muitas árvores e um monte de mato dentro. Ella foi se sentindo aos poucos feliz em seu jardim. Um dia, logo cedo, Ella acordou e se sentiu bem dada. Gostou de estar ali. Depois desse dia, Ella passou a se ocupar procurando pequenos objetos abandonados no fundo da casa e trazendo ao menino de presente. Dizem até que foi no meio desse quintal que o menino esquerdo de Manoel de Barros vira aquele pente sem costela. Pode ser. Pois tudo que Ella encontrou lá também parecia incorporada à natureza daquele bosque como se fosse um rio, um osso, um lagarto. E, com toda graça dada ao poeta, também acho que as árvores colaboravam na solidão dos objetos caçados por Ella.

Acompanhado de rebolados de bunda e rabo, de lá se veio tudo. Galhos, pedras, bicho, pedaços de plástico, bola de capotão, soldadinhos de chumbo, carrinho de ferro, colher e até cacos de vidro. Tudo era dado. Primeiro as coisas se deram ao chão, como restos de abandono, depois se deram a Ella que tomou de presente as coisas do chão. Era uma felicidade aquela cã e suas miudezas. Era um apego ao chão o menino colecionar suas miudezas. O amigo que gostava de reggae dizia que aquilo tudo era roots1.

Um dia o menino e o amigo ouviram jazz e reggae num churrasco de domingo. Havia convidados. Houve bebericos e outras brincadeiras mais. E houve carne. Milles e Ella gostavam de carne. Mas ali quem comia mesmo eram os convidados, o amigo e o menino. Mais convidados, mais bebericos. Menino saiu de casa atrás de mais brincadeiras. Passou no supermercado. Comprou lá uns goles a mais de festa, comida e sal. E saiu.

Na frente do supermercado o menino viu uma placa de madeira pintada que dizia: “Picanha de Boi Bertin R$ 10,90”. A placa era enorme e fez rodeio nos olhos do menino. O menino mancou do lado esquerdo, tropeçou no cadarço bambo com o pé, caiu com o joelho na calçada e se fez espatifar no chão. Aos goles a mais de festa, a comida e o sal. Houve churrasco de domingo na rua. O menino nem se ralou. Se levantou do chão feito jogador de futebol que faz gol de bicicleta. Queria comemorar o gol com a torcida. Queria levar pra casa aquele resto de festa. Deixou as coisas espatifadas no chão, pegou com as duas mãos numa quina da placa e desceu a rua se equilibrando a tudo.

Em casa, os convidados não gostaram. Nem engoliram a história. Queriam uns goles a mais de festa, a comida e o sal para a picanha. Não a picanha pintada na madeira. O menino colocou a placa no jardim e a festa acabou. Aquela noite não se ouviu mais nada, nem jazz, nem reggae. Só Ella gostou do presente da rua. É que Ella é dada.

No outro dia, o menino acordou e antes mesmo de escovar os dentes abriu a porta dos fundos. Ella tinha feito arte. Tinha deixado presente do jardim na porta que dava pra cozinha. Uma torneira velha. O menino fez festa com Ella: “Toda dada essa Ella! Toda dada!”

O menino que se dizia esquerdo começou a enxergar poesia em presente de cachorro, chinelo de dedos e adjetivos tortos. Fazia arte com os olhos o menino. Ficou a imaginar na torneira da Ella a Fountain de Duchamp. Dizia que havia nos presentes da Ella uma apropriação dos objetos, que eram transformados ou aproximados uns dos outros visando novos significados. E isso era ser dada. Com a torneira na mão, aparentando trejeitos de Hamlet, o menino se perguntou: O objeto criado afinal serve pra quê? Será sempre um mictório ou servirá um dia de fonte? Tratando-se de mictório o que se espera dele é que se deposite ali o líquido que vem de você. Já se o objeto for visto como fonte, não é verdade que a água vem do objeto, esperando que você colha a água que é jorrada ali, refrescando-se dela? Foi um ser não ser danado aquela manhã do menino, dos cachorros e da torneira. Acabaram todos eles dados à questão, por fim.

“Assim como Hamlet, [o menino] sabe que sua ação não pode alterar a essência do que é, de modo que o conhecimento é a morte da ação” (Regina Schöpke, “Uma genealogia da diferença”, em Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, p. 179). “Não por sua profunda reflexão das coisas, mas porque uma vez que ele viu a essência das coisas, repugnou-lhe agir” (Nietzsche, O nascimento da tragédia, #16). E, sem saber se havia visto demais ou de menos, resolveu enfrentar a morte daquela questão inicial, resolveu mudar, sem saber pra que aquela torneira lhe serviria, sem ao menos saber como viveria depois disso. Fez-se assim arte. Afinal, o menino era mentiroso por natureza e foi preciso escolher dentre todas as mentiras (religião, moral e metafísica) aquela que o fizesse crer na sua vida, afirmando-a e a amando sob todas as circuntâncias. O menino então brincou2 de filho do rei da Dinamarca com a torneira:

Ser ou cessar-se? A questão me pergunta.
(...)

Walter Benjamin, que não era dada mas queria entender os presentes da Ella, dizia:

“Toda tentativa de gerar uma demanda fundamentalmente nova, visando a abertura de novos caminhos, acaba ultrapassando seus próprios objetivos. Foi o que ocorreu com o dadaísmo. Os dadaístas estavam menos interessados em assegurar a utilização mercantil de suas obras de arte que em torná-la impróprias para qualquer utilização contemplativa. Tentavam atingir esse objetivo, entre outros métodos, pela desvalorização sistemática do seu material. Ao recolhimento, que se transformou, na fase da degenerescência da burguesia, numa escola de comportamento anti-social, opõem-se a distração, como uma variedade do comportamento social. O comportamento social provocado pelo dadaísmo foi o escândalo. Na realidade, as manifestações dadaístas asseguravam uma distração intensa, transformando a obra de arte no centro de um escândalo. Essa obra de arte tinha que satisfazer uma exigência básica: suscitar a indignação pública. De espetáculo atraente para o olhar e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num tiro. Atingia, pela agressão, o espectador. E com isso esteve a ponto de recuperar para o presente a qualidade tátil, a mais indispensável para a arte nas grandes épocas de reconstrução histórica” (Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica).

Que grande época de reconstrução histórica pode ser essa então se não a do próprio tempo vivido? A compreensão do fato se dá num devido tempo e lugar? Ou o tempo e espaço são o próprio fato inventado, fugindo assim de qualquer compreensão?

Nos perdemos em datas, nomes e lugares - em 1917, Duchamp e suas contra mãos; em 1935, 36, Walter Benjamin e seus encontros; em Primeira, Segunda e outras tantas grandes guerras, seus ilustres mortos e seus choques contra o chão; em 1789, mais uma vez 1917, 26 de Julho, 1959, o povo e seu destino; em muito de “naquela época”, um pouco a mais de “fulano de tal”, e algo a mais de um “logo ali”. Quantas datas, nomes e lugares serão necessários pra se dizer do agora? Quantas semelhanças e igualdades serão necessárias a mais? Há de se ver muita ainda. Pois muito se dirá, em outra época, em outro local, até que se viva num mundo de “diferenças”3, num mundo de devires, num mundo de intensidades.

Citando Nietzsche, Deleuze se dá conta que “embaralhar os códigos”4 é uma tarefa muito difícil.

“A arte representativa, a despeito de sua beleza e de sua magnitude, paga tributos à identidade e à similitude perfeitas, jamais rompendo com um determinado estado de coisas. Nesse sentido, a arte corre o perigo de se tornar um simples adorno ou uma mera peça decorativa. Uma arte nômade, ao contrário, causa uma espécie de mal-estar e uma desagradável sensação de ignorância àqueles que tentam decifrá-la segundo os códigos do mundo sedentário” (Regina Schöpke, “Arte e pensamento nômades: A afirmação da difernça”, em Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, p. 179).

Ella se distanciava de tudo isso. Distanciava-se dela mesmo ao se entregar por inteiro àquelas sementes de chão. Ella colaborava com a des-solidão daqueles objetos caçados, que, assim como ela, faziam companhia para as árvores. “Inventar-se-á, certamente, o que se fazer com tanta coisa, mesmo que pra isso as coisas tenham que ser inventadas”, pensava Ella. O menino que era esquerdo e gostava de jazz, passou também a inventar palavras, a desaprendê-las de sua gramática, de sua ordem, de seu sentido.

O menino pensava agora que até podia inventar histórias. Churrasco de Domingo foi seu primeiro objeto inventado, aqui contado. Duchamp, dizem, morreu de rir quando soube. Walter Benjamin ainda tem dúvidas sobre o fato de a placa ser de madeira e poder muito bem servir de carvão para a churrasqueira e, por consequência, servindo à massa a própria carne - picanha que seja. Edgar Morin… Ah, Edgar Morin era um dos convidados daquele domingo. Veio com Gilles Deleuze, que fez toda a diferença naquele que foi o “churrasco de rua”. Foram embora quando a festa acabou. O casal de amigos que gostava de Madonna, de Rocco e de Lolla disse ter ouvido Morin e Deleuze sussurando no portão: “Acho que comi demais”. “É, também estou satisfeito”. O amigo que gostava de reggae disse que os dois pensadores eram roots. Ella abanou o rabo. Miles cheirou. O menino achou graça – “sorri como uma criança para quem as maravilhas que fazem sorrir continuam a ser maravilhas depois do sorriso e por isso o retêm”. (José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia, p. 244)

1 roots: Segundo o amigo do menino que gostava de reggae, roots é tradição. Quanto a isso o menino repassa: raiz. Menino arrisca-se a dizer que a Tradição que faz samba também é roots. O amigo do menino concorda calorosamente. “That’s a fucking root stuff, man”, disse quando viu a Tradição passar de passeio no carnaval do Rio de Janeiro. E dizia man como o puro negão da Jamaica. Fez-se negão de carnaval o amigo do menino. Negão que puxa samba, que bate no tampor, que faz sacolejos com tamborins, relampeja os agogôs, quase surdo com o grave que tem. O carnaval do Rio de Janeiro é roots! O de Salvador também. E o da Bahia toda, de Pernambuco, do Maranhão ao Pará, Amazonas não liga tanto pra isso, mas faz samba também. Só que prefere bois-bumbás. E de Norte a Sul se faz carnaval no Brasil. Até quem não tem tanta tradição assim arrisca-se a passos estrangeiros nessa terra do samba. Aí se vai aos clubes bebericar, pular carnaval e beijar garotas. Improvisos de samba em terra de samba. Faz-se de tudo. A mania do carnaval ser maiúsculo é que faz dele ser muitas vezes o que não é. O carnaval muitas vezes deixa de ser roots assim, com esse apego. Se fosse Joãozinho Trinta diria que o carnaval é do povo. Há de se concordar. Mas antes do povo ter o carnaval, já existia o samba pro povo sambar. Muito antes com certeza do povo ter o dito Carnaval de Uma Cerveja Qualquer. Não seria chamado assim se a cada ano não se fizesse qualquer. Só mesmo negão que bate tambor, as alas das baianas no Rio e o trio-elétrico na Bahia pra saber que em carnaval não se samba um samba qualquer. Até boi-bumbá sabe disso. “Boi-bumbá e maracatú também são roots?”, perguntou o menino. “Folclore é tradição”, sintetizou a questão o amigo. “Pois então deve ter carnaval de cabo a rabo, não Carnaval de Uma Cerveja Qualquer”, disse o menino. “A cerveja dá uma força”, disse o amigo, que descrevia roots como ninguém. Então roots é muito mais que samba. Samba serviu para ele sambar, se sentir negão e dizer que carnaval é um puta negócio do caralho! “Roots é”, dizia ele, “o caminho”. “O caminho da tradição?”, perguntou o menino pondo preposições demais às palavras. Como que numa hipérbole, recuou: “Sim, tradição, caminho”. Fez-se preciso de vírgulas o menino. “Sim”, afirmou o amigo, “mas roots também pode ser tosco, primitivo”. O menino que já prestava atenção em vírgulas, viu nessa ordem das colocações do amigo motivos de simbiose. Viu ali que tradição e caminho eram contrários, quase inimigos. Servindo-se da ordem como compadre-irmão que quer ver o fim do outro. Tradição se ligava a tosco. E caminho a primitivo. Foi só esperar por toda sua definição, a definição de roots do amigo do menino. Quem fez jogo de letras com as palavras foi o menino. O amigo quis encurtar o caminho e tocou reggae no som. Estava tudo ali, tradição, caminho, tosco e primitivo. Naquela noite de definições quem falou de verdade foi Bob Marley, Peter Tosch, Gladiators, Israel Vibration e outros mais. Por certo aquela noite foi roots.

2 Paráfrase do texto “Hamlet” a partir de uma possível concepção de Manoel de Barros, 1993. Íntegra em “Gorjeio”, publicado aqui neste blog.

3 “O campo da diferença pura é o território virtual das singualaridades – um lugar do ‘não-lugar’ dos elementos singulares e das forças que atravessam todas as coisas. Aliás, a diferença pura [de Deleuze] não pode ser representada exatamente por esta razão: não se pode representar o díspar. Somente os corpos, somente aquilo que pode ser apreendido por nossa sensiblidade pode ser objeto de uma representação. A diferença é a própria forma como o ser se expressa. Daí por que ela é objeto apenas do pensamento. É por uma espécie de intuição que o pensamento pode, enfim, dar conta da diferença. A razão nada pode fazer além de colocá-la sob o jogo da identidade e da semelhança – tamanha a sua dificuldade para compreender aquilo que é, em si mesmo, único e insubstituível” (Regina Schöpke, “Arte e pensamento nômades: s”, em Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, p. 178).

4 “No nível daquilo que ele escreve e daquilo que ele pensa, Nietzsche prossegue uma tentativa de decodificação, não no sentido de uma decodificação relativa que consitiria em decifrar os códigos antigos, presentes ou por vir, mas de uma decodificação absoluta – fazer passar alguma coisa que não seja codificável, embaralhar todos os códigos” (Deleuze, “Pensée nomade”, em Nietzche aujourd’hui?, t. I, p.165 – tradução de Regina Schöpke).

5.3.07

A®TENTADO [A ARTE E A GALERIA DE ARTE]


O homem demonstra forte apego à descoberta de quem é ele de fato; porque diabos veio parar aqui; e para onde, santo deus, encaminha o seu fim.

Nas tardes de devaneio e sol, o inquieto homem nota, só de olhar para o chão, a imagem dele mesmo duplicada numa sombra. Aquela mancha escura o agarra pelos pés e o acompanha durante todo o dia. O homem tem sede e procura refresco. Mata sua sede e se vê no seu reflexo. Passa horas de seu dia observando suas semelhanças e diferenças com o que já está cansado de ver - tudo que está entre o céu e a terra, menos ele próprio. E lá mesmo, na frente do lago, surge a primeira dúvida: “Se eu sou eu, quem é esse rapaz aí?” Antes mesmo de pensar numa responda, ele indaga mais uma vez: “Como é que você veio parar aí, rapaz?” E já sem sol, sem lua, sem a mesma sede de antes, cansado, mas sempre muito curioso, o homem deixa à margem a terceira pergunta. De tão intrigante, nasce como um eco: “Onde foi parar a minha sombra, onde foi parar aquele rapaz?” De volta pra casa, o homem lembra do que foi o dia e chega até a antecipar o amanhã. O homem dorme… E sonha com aquele mesmo rapaz (ou seria outro agora?).

Sonha com tudo que há entre o céu e a terra e com outras coisas que nem se lembra mais. Vê no sonho o seu duplo e o duplo do seu mundo, em preto e branco, em cores, parado, em movimento, pra frente, pra trás, enfim, da sua maneira de se ver no mundo. O homem acorda e se perde entre o dia e a noite, entre o real e o imaginário, entre a primeira, a segunda e a terceira perguntas do lago. Passa o dia imaginando coisas. Sai. Precisa respirar, tem fome, tem sede. Precisa ser visto para existir. E novamente o homem se amarra a sua sombra, se curva a seu reflexo e se alimenta de seu sonho - o da sua própria eternidade. Pois seria um pesadelo se não fosse assim… Eterno.

Nas noites mais frias, o homem tem medo de tudo. De sua própria morte e dos que o faz existir. Vê na morte o inevitável e antecipado amanhã, a sua mágica metamorfose do que foi um dia. Cria então rituais aos mortos, com direito a efeitos de luz e sombra, que dêem ali a esperança de manter no morto a sua própria memória da morte. Alivia assim, a duras penas que seja, o peso enorme que é se desgarrar de sua sombra, enfiar a cara inteira no lago, com o medo imenso de ir para a casa e nunca mais sonhar, vivendo um eterno pesadelo… O seu fim.

O homem demonstra forte apego à imagem… A sua e a de tudo que há entre o céu e a terra.

Decide traduzir aos olhos sua representação do mundo, seus anseios, interesses e medos. Muitas vezes envolto entre fumaça e fogo, o homem dá sinais de sua existência. Experimenta poderes mágicos que desdobram seu equilíbrio. Cria traços de civilização. Deixa pegadas. Abandona registros de seus primeiros desejos e necessidades. O homem diferencia a sua criação do que já está aí criado, nascido, rebentado; mas espera ver o amanhã, que também vai se criando, nascendo e rebentando todo santo dia, vestido tal qual a sua própria criação, ao imaginado. Muitas vezes o tem. Outras vezes, porém…

O homem mantém-se curioso. E vai além.

Inventa jeitos e trejeitos de contornar sua imaginação. Cria desenhos, histórias, objetos e artifícios que dêem conta da sua existência, que o descreva no mundo, que o deixe em harmonia com seus semelhantes… Ou em guerra com suas diferenças (onde estariam tais diferenças se não nele mesmo?). Vindo de seu mundo imaginário, mágico por certo, o homem desfruta dessa sensibilidade estética que arrepia o seu póro, agua sua boca, zumbe seu ouvido, perfuma seu nariz, ilumina seus olhos. O homem usa o seu corpo e o meio como um espaço de escritura, numa incansável narrativa de si mesmo e do seu povo. Delicia-se do mundo e deixa nele seu testamento. O homem goza nas calças com o prazer dessa atividade do espírito - que assim se chama por não ser alimento do corpo (nem carne assada, nem repolho cru, nem leite materno). Mesmo porque, que graça teria alimentar apenas o corpo que come, digere e acaba em merda? O homem precisa de um fim mais nobre, um palco maior para sua calma… Para sua alma. Precisa saber que ao baixar das cortinas, aquela história se finda, mas que há ainda quem respire atrás daquele pano pesado e denso, pronto para se curvar à platéia agradecida, pronto até mesmo para encenar novamente… Numa outra sessão… Talvez num outro dia… Talvez, quem sabe…
O homem demonstra forte apego a ele mesmo. E como ser diferente, se afinal a única coisa que o homem tem é a si próprio (se é que o tem)? O resto… O resto são sombras, reflexos e sonhos.

São de sombras, reflexos e sonhos que se faz arte. E do apego do homem a ele mesmo que se faz galeria de arte. Faz museu e mausoléu. Serve para se ver melhor, diz o homem. Não só ver, como a todos os sentidos de um lobo faminto se fazendo de avó de criança que usa chapéu vermelho e pergunta para o lobo travestido para que serve aquilo tudo nele - aqueles olhos, aquelas orelhas, aquele nariz, aqueles dentes tão grandes que seriam capazes de devorá-la se não fosse a presença inesperada do ilustre e memorável lenhador. Quem espera o lenhador também se entrega ao lobo faminto. Aliás, a que horas é o vernissage? Não pode atrasar. A exposição pode acabar e o lobo comer a criança. Perde-se, assim, a arte, a criança (por acaso arte é criança para carregar artigo?). Capaz até da avó nunca sair do armário (nem a arte, quem sabe).

A arte é um animal faminto, uma criança a ser devorada, uma velha presa a seu passado, um herói com tendências épicas. O artista é o homem travestido disso tudo. A galeria de arte, essa história toda.

A arte também pode ser vida, o artista, um guerreiro, e a galeria de arte, o estado das coisas.

Para isso, Regina Schöpke defende Deleuze:

“O guerreiro, na verdade, defende códigos muito particulares – resultantes de um olhar que desconhece as leis de uniformidade e de enquadramento do Estado soberano. A única ética que ele conhece é a dos “Iguais”. Ele afirma sua singularidade contra todos os meios de apoderação e de captura do Estado. Esse é verdadeiramente o guerreiro nômade e é dele que queremos falar e não do militar devotado às causas do Estado. Deste último já sabemos bastante; resta-nos agora desvendar o espírito desse homem de guerra que afirma o devir e aceita a morte como o coroamento de uma vida plena. Esse homem, com certeza, experimenta outras formas de relação com o mundo e com as coisas. Afinal, ele jamais poderia ter as mesmas relações que um sedentário, seja com as mulheres, com a família ou com os animais, “visto que ele vive todas as coisas em relações de devir” (Regina Schöpke, “Arte e pensamento nômades: A afirmação da diferença”, em Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, p. 169 - 170).

E continua na defesa do guerreiro:

“Nada é mais natural para um nômade – homem de espírito aventureiro, incansável nos seus objetivos e implacável quando o assunto é a defesa do seu próprio modo de vida – do que tomar o devir como o verdadeiro ‘destino’ para a sua existência incerta. Afinal, o guerreiro não obedece (no sentido mais estrito do termo) a ninguém; ele desconhece as exigências do Estado e da moral sedentária. Sua moral não é a da comunidade, mas a do ‘bando’. Suas regras são as de uma ‘minoria’ que não se mistura – mesmo que, na aparência, ela pareça fazer parte do aparelho de Estado” (Ibid., p. 170).

Invente seu jeito de contar história. Cá segue uma história inventada.

12.2.07

A®TENTADO [A CIDADE E O HOMEM]


“Mil anos de guerras, mil anos de festas! É o que desejo para os Yanomami. Uma ilusão? Receio que sim. Eles são os últimos sitiados. Uma sombra mortal se estende por toda parte… E depois? Talvez se sintam melhor, uma vez rompido o último círculo dessa última liberdade. Talvez se possa dormir sem ser despertado uma única vez… E algum dia, ao lado dos chabuno, haverá então perfuradoras de petróleo; no flanco das colinas, escavações de minas de diamante; policiais nas estradas, lojas à beira dos rios… Harmonia em toda parte” (Pierre Clastres, “O último círculo”, em Arqueologia da violência, p. 54, publicado originalmente em Les Temps Modernes, nº 298, maio 1971).


É da cidade que vem aquela nuvem cinza que parece que começa, mas não tem fim.

É da cidade que vem todo esse barulho. A cidade deixa a voz rouca. É lá onde talvez nunca se fizesse ouvir, onde talvez nunca tenha se quer um dia ouvido falar. É la onde as palavras perdem força e muitas vezes todo o seu valor. É lá onde se conversa do nada.

É da cidade que vem esse cheiro forte de queimado. Que é em volta do fogo que se faz roda. A roda de luz, que faz os olhos funcionarem onde antes era escuridão. A roda de calor, que se faz avançar contra o sereno e áreas mais frias. A roda de festejar, que faz da noite um mundo de sonhos, que faz o dia ser brincadeira de criança. É da cidade que vem esse cheiro forte de merda. Que é o lixo que faz a cidade ficar maior, com mais cheiro de queimado. Pois sempre haverá energia desperdiçada, restos de quem vive e de quem já viveu. Seja lá qual for a tecnologia ou sensibilidade empregada no sistema, na cidade ou no homem, sempre haverá energia desperdiçada. É da cidade que vem esse cheiro bom de comida. Que é onde se acha o que comer que se pára (se não der o que comer, morre). E lá se come cru, queimado, às vezes a própria merda. Mas se há alguém lá, é porque come… E caga… E faz roda.

Não dá vontade de ter mais nada depois de gozar dentro desta cidade. Prove!

Cheia de cacoetes e poses, a cidade grande se enfeita para quem quiser ter pelo menos uma noite de prazer com ela. Há quem diga que a cidade viola os sentidos dos homens. Pode ser. Talvez também escancare seus sentimentos. Esta cidade dá de quatro em qualquer outra porque gosta. Ela não olha pro lado, já vai logo se deitando, pondo tudo pra fora, exibindo-se inteira. Abre as pernas pro céu e mexe, mexe e remexe até sentir dor. A cidade não pára. Pega pelos braços as almas que tem. Arremessa pra dentro a carcaça de ser. Beijá-la de língua nem sempre faz assim tão bem.

Vem o depois. E para se dizer desiludido, arrependido ou culpado, o mais fácil é acender um cigarro, enclinar-se na cadeira e suspender os pés do chão. Tomar refrigerante de garrafa, comer salgadinhos empacotados, ligar a televisão e se alimentar de ilusões. Desbundar-se com o mundo sempre! Desbundar-se da cadeira jamais! Sim, claro que vem o depois… Pois então, logo ao acordar, antes mesmo de escovar os dentes, invente alguma história, conte um sonho seu, engane o depois com trapaças e jogos, livre-se dele, convença-o a ir embora pra casa mais cedo, “tó seu dinheiro pro táxi e suma daqui”. Que para estar atrasado, basta sair de casa. Se o depois descer azedo, ácido ou ardido demais, que seja portanto cidade de uma noite só (e que, por favor, estas palavras passem despercebidas, sendo nada mais que um par de parágrafos à toa). Já se a boca salivar pelo doce da fruta, procure um abrigo que aqui se vai durar pelo menos uma lua. E a próxima lua vem que nem se nota. Então cuidado! Aqui há truques como sombras no chão. Se não brilha, nem se vê!

O homem da cidade é um eti cetera. Aqui se pega em coisas como se pegasse em galhos. E só se solta de um se houver outro ao alcance das mãos (se este for tão ou mais seguro quanto foi o primeiro, tão ou mais robusto quanto foi seu passado, tão podre que o faça morrer, ou o nada que o faça voar). Aqui os homens se dão às caras, aos montes. Caras que pouco se cruzam, é verdade, mas que estão sempre prontas pra bater. Aqui quem tem telhado de vidro caça água de chuva com balde. Aqui se faz o quatro sentado, esperando outra dose do garçom. Aqui sempre há uma saideira. E se o serviço não estiver do seu gosto, peça outro, começe de novo, vá pra outro bar, tome mais um porre, mude de marca, de identidade, de pessoa. Mas faça alguma coisa!

Amigo de infância aqui é lenda. Melhor amigo aqui é aquele que gosta da mesma prateleira de cd que você ouve, da mesma seção de livros que você lê, da mesma gôndola do supermercado que você compra, da mesma grife da moda que você veste, do mesmo sistema operacional que você usa, do mesmo animal de estimação que você cria, do mesmo teatro da vida que você vive, da mesma tela de cinema que você vê seu filme passar, estrear e se fazer. Melhor amigo aqui é aquele que tem a mesma embalagem do produto que é você, a mesma maneira de ser que vocé é. Melhor amigo aqui é aquele que evita a mesma doença que você. Muitas vezes, da mesma mulher que você gosta, seu melhor amigo também vai gostar, e talvez só a evite por ser ali e naquele momento o seu melhor amigo. Depois, ao virar a esquina, sabe-se lá quem é a mulher que você gosta e quem será o seu melhor amigo.

Os gostos são errantes e as modas são inventadas. Há quem diga que é uma tal classe superior que inventa moda, que define o gosto legítimo desta cidade. Inventar moda? Moda são inventos pro homem florear. E isso, homem faz desde que é homem. Tem gente que não gosta e vive inventando moda com isso. O fato é que há um monte de gente que vai atrás do novo sem nunca conseguir alcançá-lo. O novo custa caro. Deu-se valor ao novo, e pra ser novo alguém teve que fazer primeiro. O novo seria então a primeira repetição? Mas a repetição não se faz primeira, nem segunda, nem terceira. Muito menos por último. A repetição vê na diferença desse pódio o novo. Muitos acabam esperando a novidade ser substituída por outra pra comprar nas ruas, pela metade do preço, o que antes se comprava em butique. Acabam esperando na verdade a sua própria imaginação absorver o novo. Existem comunidades internacionais dessas butiques que criam, vão buscar e usam tudo primeiro. Existem também as comunidades dos vendedores de rua que copiam e esperam o mundo passar. E existe tudo em vice-versa, desde que se passou a ver em butique as imagens da rua. Basta o indivíduo ter o mesmo universo imaginário que outro para logo se fazerem irmãos. Muitas vezes, o seu melhor amigo pode estar a léguas e léguas distante da sua casa. Muitas vezes é mais fácil ser amigo daquele distante que do seu vizinho. O de lá gosta das mesmas coisas que você, muitas vezes sabe tudo sobre o que só você julgava saber. O seu vizinho nem ao menos lê o mesmo jornal que você. Há um cortejo de sentimentos comuns, uma comunidade emocional de aproximação. Mitologia e estética se unem para que os consumidores, seja lá onde e como se encontram, compartilhem dos mesmos rituais, do mesmo universo imaginário que o seu, tornando-se assim seu melhor amigo.

Aqui a vida se consome em símbolos. Aqui não se perde tempo com significados. Tudo se adequa e se traduz ao mundo de cada um e a sua própria comunidade de pertencimento. Mudando de contexto, reinventam-se novos significados para as mesmas coisas, reinventa-se assim o mundo inteiro e talvez até todo o universo. Aqui o que se consome são estilos de vida. Aqui a vida se transforma em obra de arte. Aqui se celebra a paródia, o pastiche, a ironia, o divertimento, a face não profunda da arte. Aqui se desenham superfícies. A cidade é uma casca, uma célula, um shopping center desmontado de sua razão de ser. Aqui não se nasce, mistura-se. Aqui não se cria, repete-se. Aqui não se troca, escolhe-se. Aqui os signos se dispersam. Aqui não se tem certeza de nada! Aqui o futuro deu as costas pra cidade, deu as costas pra você.

A cidade se mostra com os dentes sujos, com as ancas tortas, com dores no ventre de algo que se perdeu, algo que foi tirado das entranhas do seu passado e que agora se arrasta em pedaços pelas ruas. Pois oras, está dito que a cidade não aceita reumatismo! Se não anda, fica fria, apodrece, evapora, vai-se embora, já passou.

Aqui se faz rua como se fizessem trilhos. Infindáveis são eles… Multiplicam-se em avenidas, alamedas, vielas, rotas de escape, trajetos alternativos e atalhos. Já não se sabe mais donde tirar tantos nomes pra batizar tanto asfalto. Quanto mais importância se dá ao nome, maior o trilho. Existem ruas que usam nomes de mortos (sempre mortos). Homenagem de alguém que julgou um morto merecedor de uma rua inteira, como que escravizando o nobre fantasma a perambular por lá por todo o sempre (ou até que alguém novo julgue outro alguém de morte fresca mais merecedor da rua que o antigo dono, deixando assim seu fantasma livre para viver em outras ruas, que não a só dele).

Existem outras ruas que comemoram datas de algum momento que se foi. Outras usam nomes de pássaros que há muito não se vê por aqui (muitos deles talvez nunca tenham dado as caras neste céu). Usam nomes de árvores como se substituíssem a sombra fresca pela frieza do asfalto. Usam nomes de peixes que não nadam mais nestes rios (cadê os rios que estavam aqui?). Usam nomes nativos como se estivessem muitos deles aqui; mas tupi faz cócegas no ouvido, faz a língua saracotear no céu da boca, então fiquem aí os Ibirabueras e Apinagés. Usam nomes de outros lugares distantes, como se esta cidade pudesse conter todo o mundo… Atenção! A rua não acaba ali, no asfalto, na calçada, seja lá o nome que tenha. Ela cruza parques, atravessa pontes, sobe torres, desce rio, joga âncora nas encostas, cruza o sinal vermelho, burla seguranças de plantão, pula os muros das casas, arrebenta grades, anda descalça nos quintais, arromba janelas, invade o seu quarto e toma café da manhã com você, na sua cozinha.

Como afastar-se de tudo isso? Como proteger-se do inimigo? Quem afinal é você? Que presente vai dar ao seu melhor amigo? Qual deles vai estar deitado com sua mulher quando você chegar? Depois de ter um dia dos cães. Depois de atravessar tantas ruas, tantas avenidas, tantas vielas, tantas rotas de escape, tantos trajetos alternativos, tantos atalhos e tantos nomes. Depois de tanto pensar. Depois de tanto absorver este ar. “Quem vai me tirar daqui”, a cidade pergunta. Talvez esta cidade seja cidade de uma lua só. Talvez esta cidade seja mais salgada que doce. Talvez esta cidade esteja arrependida do que fez, sentindo-se culpada por um nobre fantasma que morreu na cruz. Talvez esta cidade queira mesmo pegar o primeiro táxi que passar e ir embora pra casa. Talvez esta cidade não queira mais. Há quem diga que não, que o que a cidade mais quer é mais. Pode ser.

A cidade não tem dono. Esta cidade é o próprio abandono de quem vive nela, o aborto de um filho que nasce todo santo dia dela. É um floreio de drama a cidade. Um resto por fim. Há quem pense assim, então pode ser.

Não saliva a boca dizer tão pouco desta cidade. É preciso que se dê cheiro de fome à ela, como se dá às palavras que ditam a receita de um bolo, de um pudim, de um churrasco de domingo que seja. Que a cidade seja consumida e se consuma por ela, nela inteira. Que inspire o ar que ela mesmo expira. A cidade não tem tendência de ser árvore por si só. Nela deve-se sim conter a natureza. Mas somente o homem pode se transformar em árvore e fazer “fotossíntese”, tirar do meio o que ele mesmo produz para se alimentar de luz. Mesmo que pra isso plante o homem uma árvore. Mas é das raízes dos pés pregados ao chão que se fala agora. Que o podre da fruta que faz gerar outra árvore venha do homem enraizado à terra. Que saiba tirar bom proveito dela o homem. Que é de lá que se vai e de lá que se tira, diz um pedaço da Bíblia até. E se diz em outros lugares mais. Que o homem saiba abandonar o seu desuso feito folha seca. Que o homem balance ao vento, preso firme ao local que escolheu viver naquele instante. Pois é sabido que árvore anda, pra cima e pra baixo. Se não andasse, não se fazia crescer. Há quem pense assim… Então pode ser. Nietzsche pensava assim: “O mundo subsiste, não é nada que vem a ser, nada que parece. Ou antes: vem a ser, perece, mas nunca começou a vir a ser e nunca cessou de perecer – conserva-se em ambos… Vive de si próprio: seus excrementos são seu alimento” (Nietzsche, Os pensadores, p. 360).

“Nascer, viver, morrer são verdades universais e sequência natural. Se quisermos transformá-las em verdade pessoal e em sequência cultural, teremos de escrever muito mais do que os três verbos por aquela ordem dispostos, e admitir que, entre os dois extremos de nada e nada, o viver possa conter alguns nascimentos e mortes, não apenas os alheios que de algum modo nos toquem ou firam, mas outros nossos: tal como a cobra, largamos a pele quando nela não cabemos, ou então vêm a faltar-nos as forças e atrofiamo-nos dentro dela, e isto só acontece aos humanos.” (José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia, p. 240)

Que a cidade floresça com seus enfeites, cheiros e cores plantados nela. Que o homem seja uma árvore por si só. Si, sol e lá. Cantando.