
“Eu lhes digo: não há começo e nós não trememos, nós não somos sentimentais. Nós rasgamos, vento furioso, o linho das nuvens e das preces, e preparamos o grande espetáculo do desastre, do incêndio, da decomposição. Preparamos a supressão do luto e substituímos as lágrimas pelas sereias estendidas de um a outro continente. Pavilhões de alegria intensa e viúvos da tristeza do veneno. DADA é a insígnia da abstração; a propaganda e os negócios são também elementos poéticos.
Eu destruo as gavetas do cérebro e as da organização social: desmoralizar por todo lado e lançar a mão do céu ao inferno, os olhos do inferno ao céu, restabelecer a roda fecunda de um circo universal dos poderes reais e na fantasia de cada indivíduo” (O Manifesto DADA, 1918).
Um menino que se dizia esquerdo tinha dois cachorros e gostava de jazz. O cão se chamava Miles e a cã, Ella. Miles e Ella eram amarelos e lindos. Miles era mais velho e já aprontou muito de suas fofurices até. Mas este caso aconteceu com Ella, logo de chegada.
Ella veio pra casa do menino nos braços de um amigo que morava com ele e gostava de reggae. Dada de enxoval e tudo por um casal de amigos do menino que gostava de Madonna. Era filha de Rocco e Lolla, Ella. Rocco e Lolla moravam na casa do casal de amigos do menino e eram felizes em seu jardim. Um dia o casal de amigos do menino foi viajar. Lolla entrou no cio. Rocco gostou. Quando o casal de amigos do menino voltou de viagem, Rocco e Lolla estavam grudados, um de rabo pro outro com um pedaço do pinto do Rocco tentando escapar de dentro da Lolla. Não houve balde d’água que soltasse os dois. Até tentaram, mas acharam melhor esperar até que Rocco e Lolla pudessem cheirar o rabo e as partes de um e de outro novamente. Foi daquela foda cheirando a cachorro molhado que Ella nasceu. Diz-se que Ella passou a não gostar de água tanto assim desde esse dia - fica achando às vezes que não vai sair de dentro dela a água. Pode ser. O fato é que à água empoçada Ella prefere água de torneira e chuva. Ella prefere o rio ao mar. E definitivamente Ella não gosta de balde.
O menino que gostava de jazz e seu amigo que gostava de reggae mudaram-se para a casa onde Ella veio morar havia sido há pouco. A casa era pequena de paredes - banheiro, cozinha e sala dividiam os dois quartos - um jazz, o outro reggae. Miles e Ella dormiam lá fora, onde, aliás, a casa se fazia por inteiro. Todas as janelas da casa se abriam para um quintal comprido, coberto com caquinhos que desenhavam flores no chão. Nos fundos da casa tinha muitas árvores e um monte de mato dentro. Ella foi se sentindo aos poucos feliz em seu jardim. Um dia, logo cedo, Ella acordou e se sentiu bem dada. Gostou de estar ali. Depois desse dia, Ella passou a se ocupar procurando pequenos objetos abandonados no fundo da casa e trazendo ao menino de presente. Dizem até que foi no meio desse quintal que o menino esquerdo de Manoel de Barros vira aquele pente sem costela. Pode ser. Pois tudo que Ella encontrou lá também parecia incorporada à natureza daquele bosque como se fosse um rio, um osso, um lagarto. E, com toda graça dada ao poeta, também acho que as árvores colaboravam na solidão dos objetos caçados por Ella.
Acompanhado de rebolados de bunda e rabo, de lá se veio tudo. Galhos, pedras, bicho, pedaços de plástico, bola de capotão, soldadinhos de chumbo, carrinho de ferro, colher e até cacos de vidro. Tudo era dado. Primeiro as coisas se deram ao chão, como restos de abandono, depois se deram a Ella que tomou de presente as coisas do chão. Era uma felicidade aquela cã e suas miudezas. Era um apego ao chão o menino colecionar suas miudezas. O amigo que gostava de reggae dizia que aquilo tudo era roots1.
Um dia o menino e o amigo ouviram jazz e reggae num churrasco de domingo. Havia convidados. Houve bebericos e outras brincadeiras mais. E houve carne. Milles e Ella gostavam de carne. Mas ali quem comia mesmo eram os convidados, o amigo e o menino. Mais convidados, mais bebericos. Menino saiu de casa atrás de mais brincadeiras. Passou no supermercado. Comprou lá uns goles a mais de festa, comida e sal. E saiu.
Na frente do supermercado o menino viu uma placa de madeira pintada que dizia: “Picanha de Boi Bertin R$ 10,90”. A placa era enorme e fez rodeio nos olhos do menino. O menino mancou do lado esquerdo, tropeçou no cadarço bambo com o pé, caiu com o joelho na calçada e se fez espatifar no chão. Aos goles a mais de festa, a comida e o sal. Houve churrasco de domingo na rua. O menino nem se ralou. Se levantou do chão feito jogador de futebol que faz gol de bicicleta. Queria comemorar o gol com a torcida. Queria levar pra casa aquele resto de festa. Deixou as coisas espatifadas no chão, pegou com as duas mãos numa quina da placa e desceu a rua se equilibrando a tudo.
Em casa, os convidados não gostaram. Nem engoliram a história. Queriam uns goles a mais de festa, a comida e o sal para a picanha. Não a picanha pintada na madeira. O menino colocou a placa no jardim e a festa acabou. Aquela noite não se ouviu mais nada, nem jazz, nem reggae. Só Ella gostou do presente da rua. É que Ella é dada.
No outro dia, o menino acordou e antes mesmo de escovar os dentes abriu a porta dos fundos. Ella tinha feito arte. Tinha deixado presente do jardim na porta que dava pra cozinha. Uma torneira velha. O menino fez festa com Ella: “Toda dada essa Ella! Toda dada!”
O menino que se dizia esquerdo começou a enxergar poesia em presente de cachorro, chinelo de dedos e adjetivos tortos. Fazia arte com os olhos o menino. Ficou a imaginar na torneira da Ella a Fountain de Duchamp. Dizia que havia nos presentes da Ella uma apropriação dos objetos, que eram transformados ou aproximados uns dos outros visando novos significados. E isso era ser dada. Com a torneira na mão, aparentando trejeitos de Hamlet, o menino se perguntou: O objeto criado afinal serve pra quê? Será sempre um mictório ou servirá um dia de fonte? Tratando-se de mictório o que se espera dele é que se deposite ali o líquido que vem de você. Já se o objeto for visto como fonte, não é verdade que a água vem do objeto, esperando que você colha a água que é jorrada ali, refrescando-se dela? Foi um ser não ser danado aquela manhã do menino, dos cachorros e da torneira. Acabaram todos eles dados à questão, por fim.
“Assim como Hamlet, [o menino] sabe que sua ação não pode alterar a essência do que é, de modo que o conhecimento é a morte da ação” (Regina Schöpke, “Uma genealogia da diferença”, em Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, p. 179). “Não por sua profunda reflexão das coisas, mas porque uma vez que ele viu a essência das coisas, repugnou-lhe agir” (Nietzsche, O nascimento da tragédia, #16). E, sem saber se havia visto demais ou de menos, resolveu enfrentar a morte daquela questão inicial, resolveu mudar, sem saber pra que aquela torneira lhe serviria, sem ao menos saber como viveria depois disso. Fez-se assim arte. Afinal, o menino era mentiroso por natureza e foi preciso escolher dentre todas as mentiras (religião, moral e metafísica) aquela que o fizesse crer na sua vida, afirmando-a e a amando sob todas as circuntâncias. O menino então brincou2 de filho do rei da Dinamarca com a torneira:
Ser ou cessar-se? A questão me pergunta.
(...)
Walter Benjamin, que não era dada mas queria entender os presentes da Ella, dizia:
“Toda tentativa de gerar uma demanda fundamentalmente nova, visando a abertura de novos caminhos, acaba ultrapassando seus próprios objetivos. Foi o que ocorreu com o dadaísmo. Os dadaístas estavam menos interessados em assegurar a utilização mercantil de suas obras de arte que em torná-la impróprias para qualquer utilização contemplativa. Tentavam atingir esse objetivo, entre outros métodos, pela desvalorização sistemática do seu material. Ao recolhimento, que se transformou, na fase da degenerescência da burguesia, numa escola de comportamento anti-social, opõem-se a distração, como uma variedade do comportamento social. O comportamento social provocado pelo dadaísmo foi o escândalo. Na realidade, as manifestações dadaístas asseguravam uma distração intensa, transformando a obra de arte no centro de um escândalo. Essa obra de arte tinha que satisfazer uma exigência básica: suscitar a indignação pública. De espetáculo atraente para o olhar e sedutor para o ouvido, a obra convertia-se num tiro. Atingia, pela agressão, o espectador. E com isso esteve a ponto de recuperar para o presente a qualidade tátil, a mais indispensável para a arte nas grandes épocas de reconstrução histórica” (Walter Benjamin, A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica).
Que grande época de reconstrução histórica pode ser essa então se não a do próprio tempo vivido? A compreensão do fato se dá num devido tempo e lugar? Ou o tempo e espaço são o próprio fato inventado, fugindo assim de qualquer compreensão?
Nos perdemos em datas, nomes e lugares - em 1917, Duchamp e suas contra mãos; em 1935, 36, Walter Benjamin e seus encontros; em Primeira, Segunda e outras tantas grandes guerras, seus ilustres mortos e seus choques contra o chão; em 1789, mais uma vez 1917, 26 de Julho, 1959, o povo e seu destino; em muito de “naquela época”, um pouco a mais de “fulano de tal”, e algo a mais de um “logo ali”. Quantas datas, nomes e lugares serão necessários pra se dizer do agora? Quantas semelhanças e igualdades serão necessárias a mais? Há de se ver muita ainda. Pois muito se dirá, em outra época, em outro local, até que se viva num mundo de “diferenças”3, num mundo de devires, num mundo de intensidades.
Citando Nietzsche, Deleuze se dá conta que “embaralhar os códigos”4 é uma tarefa muito difícil.
“A arte representativa, a despeito de sua beleza e de sua magnitude, paga tributos à identidade e à similitude perfeitas, jamais rompendo com um determinado estado de coisas. Nesse sentido, a arte corre o perigo de se tornar um simples adorno ou uma mera peça decorativa. Uma arte nômade, ao contrário, causa uma espécie de mal-estar e uma desagradável sensação de ignorância àqueles que tentam decifrá-la segundo os códigos do mundo sedentário” (Regina Schöpke, “Arte e pensamento nômades: A afirmação da difernça”, em Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, p. 179).
Ella se distanciava de tudo isso. Distanciava-se dela mesmo ao se entregar por inteiro àquelas sementes de chão. Ella colaborava com a des-solidão daqueles objetos caçados, que, assim como ela, faziam companhia para as árvores. “Inventar-se-á, certamente, o que se fazer com tanta coisa, mesmo que pra isso as coisas tenham que ser inventadas”, pensava Ella. O menino que era esquerdo e gostava de jazz, passou também a inventar palavras, a desaprendê-las de sua gramática, de sua ordem, de seu sentido.
O menino pensava agora que até podia inventar histórias. Churrasco de Domingo foi seu primeiro objeto inventado, aqui contado. Duchamp, dizem, morreu de rir quando soube. Walter Benjamin ainda tem dúvidas sobre o fato de a placa ser de madeira e poder muito bem servir de carvão para a churrasqueira e, por consequência, servindo à massa a própria carne - picanha que seja. Edgar Morin… Ah, Edgar Morin era um dos convidados daquele domingo. Veio com Gilles Deleuze, que fez toda a diferença naquele que foi o “churrasco de rua”. Foram embora quando a festa acabou. O casal de amigos que gostava de Madonna, de Rocco e de Lolla disse ter ouvido Morin e Deleuze sussurando no portão: “Acho que comi demais”. “É, também estou satisfeito”. O amigo que gostava de reggae disse que os dois pensadores eram roots. Ella abanou o rabo. Miles cheirou. O menino achou graça – “sorri como uma criança para quem as maravilhas que fazem sorrir continuam a ser maravilhas depois do sorriso e por isso o retêm”. (José Saramago, Manual de Pintura e Caligrafia, p. 244)
1 roots: Segundo o amigo do menino que gostava de reggae, roots é tradição. Quanto a isso o menino repassa: raiz. Menino arrisca-se a dizer que a Tradição que faz samba também é roots. O amigo do menino concorda calorosamente. “That’s a fucking root stuff, man”, disse quando viu a Tradição passar de passeio no carnaval do Rio de Janeiro. E dizia man como o puro negão da Jamaica. Fez-se negão de carnaval o amigo do menino. Negão que puxa samba, que bate no tampor, que faz sacolejos com tamborins, relampeja os agogôs, quase surdo com o grave que tem. O carnaval do Rio de Janeiro é roots! O de Salvador também. E o da Bahia toda, de Pernambuco, do Maranhão ao Pará, Amazonas não liga tanto pra isso, mas faz samba também. Só que prefere bois-bumbás. E de Norte a Sul se faz carnaval no Brasil. Até quem não tem tanta tradição assim arrisca-se a passos estrangeiros nessa terra do samba. Aí se vai aos clubes bebericar, pular carnaval e beijar garotas. Improvisos de samba em terra de samba. Faz-se de tudo. A mania do carnaval ser maiúsculo é que faz dele ser muitas vezes o que não é. O carnaval muitas vezes deixa de ser roots assim, com esse apego. Se fosse Joãozinho Trinta diria que o carnaval é do povo. Há de se concordar. Mas antes do povo ter o carnaval, já existia o samba pro povo sambar. Muito antes com certeza do povo ter o dito Carnaval de Uma Cerveja Qualquer. Não seria chamado assim se a cada ano não se fizesse qualquer. Só mesmo negão que bate tambor, as alas das baianas no Rio e o trio-elétrico na Bahia pra saber que em carnaval não se samba um samba qualquer. Até boi-bumbá sabe disso. “Boi-bumbá e maracatú também são roots?”, perguntou o menino. “Folclore é tradição”, sintetizou a questão o amigo. “Pois então deve ter carnaval de cabo a rabo, não Carnaval de Uma Cerveja Qualquer”, disse o menino. “A cerveja dá uma força”, disse o amigo, que descrevia roots como ninguém. Então roots é muito mais que samba. Samba serviu para ele sambar, se sentir negão e dizer que carnaval é um puta negócio do caralho! “Roots é”, dizia ele, “o caminho”. “O caminho da tradição?”, perguntou o menino pondo preposições demais às palavras. Como que numa hipérbole, recuou: “Sim, tradição, caminho”. Fez-se preciso de vírgulas o menino. “Sim”, afirmou o amigo, “mas roots também pode ser tosco, primitivo”. O menino que já prestava atenção em vírgulas, viu nessa ordem das colocações do amigo motivos de simbiose. Viu ali que tradição e caminho eram contrários, quase inimigos. Servindo-se da ordem como compadre-irmão que quer ver o fim do outro. Tradição se ligava a tosco. E caminho a primitivo. Foi só esperar por toda sua definição, a definição de roots do amigo do menino. Quem fez jogo de letras com as palavras foi o menino. O amigo quis encurtar o caminho e tocou reggae no som. Estava tudo ali, tradição, caminho, tosco e primitivo. Naquela noite de definições quem falou de verdade foi Bob Marley, Peter Tosch, Gladiators, Israel Vibration e outros mais. Por certo aquela noite foi roots.
2 Paráfrase do texto “Hamlet” a partir de uma possível concepção de Manoel de Barros, 1993. Íntegra em “Gorjeio”, publicado aqui neste blog.
3 “O campo da diferença pura é o território virtual das singualaridades – um lugar do ‘não-lugar’ dos elementos singulares e das forças que atravessam todas as coisas. Aliás, a diferença pura [de Deleuze] não pode ser representada exatamente por esta razão: não se pode representar o díspar. Somente os corpos, somente aquilo que pode ser apreendido por nossa sensiblidade pode ser objeto de uma representação. A diferença é a própria forma como o ser se expressa. Daí por que ela é objeto apenas do pensamento. É por uma espécie de intuição que o pensamento pode, enfim, dar conta da diferença. A razão nada pode fazer além de colocá-la sob o jogo da identidade e da semelhança – tamanha a sua dificuldade para compreender aquilo que é, em si mesmo, único e insubstituível” (Regina Schöpke, “Arte e pensamento nômades: s”, em Por uma filosofia da diferença: Gilles Deleuze, o pensador nômade, p. 178).
4 “No nível daquilo que ele escreve e daquilo que ele pensa, Nietzsche prossegue uma tentativa de decodificação, não no sentido de uma decodificação relativa que consitiria em decifrar os códigos antigos, presentes ou por vir, mas de uma decodificação absoluta – fazer passar alguma coisa que não seja codificável, embaralhar todos os códigos” (Deleuze, “Pensée nomade”, em Nietzche aujourd’hui?, t. I, p.165 – tradução de Regina Schöpke).